COMENTÁRIOS AO VOTO DO RELATOR NO RECURSO ESPECIAL ELEITORAL Nº 82-85.2016.6.09.0139 – LUZIÂNIA – GOIÁS

O presente ensaio foi publicado na IV Antologia da Academia Quitundense de Letras - AQL (p. 33-43, 2022)
COMENTÁRIOS AO VOTO DO RELATOR NO RECURSO ESPECIAL ELEITORAL Nº 82-85.2016.6.09.0139 – LUZIÂNIA – GOIÁS
Foto: Poder 360
Por: Isaque Rafael da Silva Santos Lins

RESUMO: O presente estudo visa analisar, em síntese apertada e caráter inicial, os fundamentos doutrinários e/ou jurídicos que embasaram o voto do ministro relator no Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139 – Luziânia – Goiás, interposto por Valdirene Tavares dos Santos em face de acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás (TRE/GO), no qual se negara provimento ao recurso eleitoral interposto pela recorrente, mantendo a sentença que lhe condenara por abuso de poder religioso, com pena de cassação e declaração de inelegibilidade por 8 anos.

INTRODUÇÃO

Há muito observa-se nos Tribunais Superiores – mais recentemente com maior frequência – um comportamento proativo, no qual o julgador, valendo-se de normas de caráter mais aberto, pela via interpretativa, notadamente pelo fortalecimento do sistema de precedentes (common law) realiza mudanças na interpretação jurídica, sem que necessariamente tenha havido mudança na norma positiva[1].

Ocorre que, dado o caráter vinculante das decisões judiciais dos Tribunais Superiores, tem-se observado que basta a mudança de convicção pessoal do magistrado, geralmente fundamentada em argumentos filosóficos, históricos, sociológicos e quase nunca jurídicos, para que todo o ordenamento jurídico seja afetado por uma mudança, que não passou pelo crivo do Poder Legiferante, Poder este responsável por expressar através da Lei a vontade popular.

A título exemplificativo tem-se a (in)constante mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no que diz respeito à possibilidade de execução da pena após condenação em segunda instância, tendo em 2009 se posicionado contra, depois em 2016 se posicionado a favor e em 2019, novamente se posicionado contra, tudo isso sem que o tribunal tivesse sofrido grande mudança na sua composição.

Há que se destacar ainda a inclinação das Cortes Superiores no sentido de restringir os direitos e garantias fundamentais de um determinado grupo social, a saber os cristãos. Mais recentemente, tem-se a decisão do STF que julgou inconstitucional uma Lei 2.902/04 do Mato Grosso do Sul, na qual se tinha por obrigatória a inclusão no acervo das bibliotecas e escolas públicas de exemplares da Bíblia Sagrada. Também a declaração da constitucionalidade do Decreto 65.563/2021 que proibiu atividades religiosas presenciais no estado de São Paulo. A decisão na ADI 6622 MC / DF, na qual se proibiu a entrada de missões religiosas em aldeias indígenas, sob o argumento de que estaria protegendo o povo indígena do contágio pela Covid-19, bem como assegurando a autodeterminação, identidade cultural, usos e costumes daquele povo. Por fim, dentre tantos outros exemplos, a proposta de criação de ilícito eleitoral pelo TSE, no caso do suposto abuso de poder religioso, relatado pelo Ministro Edson Fachin, objeto de estudo do presente trabalho.

É sabido que o Estado brasileiro está assentado sobre o princípio da laicidade, segundo o qual não há religião oficial. No entanto, falar em Estado laico não é o mesmo que falar em Estado ateu, eis que o fazê-lo seria uma opção de (des)crença. A proposta da laicidade é de um estado isento de religião, não avesso a ela.

Desta forma, pretende-se analisar o voto proferido pelo ministro relator no Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139 – Luziânia – Goiás, confrontando a predileção anticristã adotada pelos Tribunais Superiores e harmonizando com o comportamento adequado ao Estado Laico.

Destaque-se, no entanto, que a tese proposta pelo relator foi rejeitada pelo TSE, de modo que, a análise doravante realizada terá por finalidade apenas a exposição da tendência de alguns magistrados para minar a manifestação, pela via democrática (portanto, legítima), de parte cristã do eleitorado brasileiro, parte essa tratada geralmente como corrente de pensamento majoritária no Brasil.

DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO VOTO E SEUS CONTRAPONTOS

Inicialmente, no que diz respeito ao mérito no Recurso Especial Eleitoral em tela, o relator deu provimento ao recurso, julgando prejudicado o agravo interno interposto pelo Ministério Público, de modo que a decisão recorrida fora reformada no sentido de afastar a cassação do mandado, bem como a inelegibilidade por 8 anos, eis que segundo o relator “as circunstâncias do caso enfrentado não revelam gravidade suficiente para a embasar a anulação da votação”. Outrossim, na parte final do seu voto o relator formulou a seguinte proposta:

Em  face desses  argumentos,  venho propor  ao  Tribunal que,  a  partir das Eleições  deste  ano de  2020,  seja assentada  a  viabilidade do  exame  jurídico do abuso  de  poder de  autoridade  religiosa no âmbito  das  ações  de  investigação judicial eleitoral.[2]

Em que pese a tese proposta pelo relator tenha sido rejeita pelo TSE naquele momento, alguns ministros reconheceram a pertinência temática de discussão, o que pode trazer o tema à baila em momento futuro, eis que as decisões ativistas têm se tornado cada vez mais frequentes nos Tribunais.

A discussão acerca da laicidade do Estado, a separação entre igrejas e Estado, são invocadas em largo arcabouço doutrinário pelo relator. Percebe-se que a proposição do ministro está fundada em um ceticismo preconceituoso, segundo o qual a influência religiosa supostamente afetaria a capacidade de autodeterminação do indivíduo na escolha do seu voto, ou segunda as palavras do próprio relator “as igrejas e seus dirigentes possuem um poder com aptidão para enfraquecer a liberdade de voto e debilitar o equilíbrio entre as chances das forças em disputa”[3]. Tal visão traduz inequivocadamente a ideia marxista de que a religião “é o ópio do povo”[4].

Partindo das premissas suscitadas pelo ministro, tem-se que as entidades religiosas minam a possibilidade de manifestação exitosa da vontade eleitoral do indivíduo, os coletivos sociais, nesse liame, “perde a legitimidade”[5].

Há uma obsessão pelas entidades religiosas, esquecendo-se o relator que a presente afirmação aplica-se a outros coletivos, tais como sindicatos, associações civis, os próprios partidos políticos, bem como qualquer outra entidade civil que se proponha ao exercício da representatividade de determinado coletivo ou interesse. A ideia de que a utilização do espaço de determinada entidade religiosa estaria por prejudicar a igualdade de concorrência entre outros candidatos do pleito não é verdadeira, haja vista que a própria legislação eleitoral fixa critérios de proporcionalidade para o pleito eleitoral, que acaba por prestigiar mais a uns do que a outros, como por exemplo a distribuição do tempo de televisão e do fundo partidário, que não são divididos em proporções igualitárias.

Ainda que a divisão de tempo e recursos não seja igualitária, sua proporcionalidade reserva um critério justificável no âmbito democrático, qual seja a concessão de benefícios por parte do Poder Público proporcionalizado à representatividade no Congresso Nacional.

Logo, não há que se falar em desigualdade ou desfavorecimento de determinado candidato que não seja escolhido por determinada entidade religiosa, há sim que se falar em ausência de representatividade entre esta e aquele.

Há ainda a afirmação de que as igrejas, em expressão numérica, estariam entre os grupos mais importantes. Esclareça-se que a democracia, enquanto Poder do povo, é norteada pela vontade da maioria, eis que, dada a complexidade social, é impossível se alcançar a unanimidade. Não há fator que possibilite ao Estado a total igualdade entre os indivíduos, isso porque, sob o ponto de vista numérico, em que todos são iguais, ou seja, seus votos possuem o mesmo valor, sempre haverá um grupo majoritário, aqui determinado por questões históricas, culturais, sociais, enfim, as mais variadas. Portanto, a igualdade é no que diz respeito ao tratamento pelo Estado; todos são iguais. Quanto ao fato numérico, não há como se alcançar essa igualdade, haja vista que os fatores que a conduzem são naturais e intangíveis aos homens. Nesse sentido, o fator numérico dos grupos não deveria jamais ser combatidos pelo Estado.

Há aqui sim uma flagrante violação do Estado à igualdade: poderia o Estado Juiz corrigir a desigualdade social, sob o ponto de vista numérico? Como faria, daria um valor diferente ao voto de determinado grupo social para que se equipare ao grupo de maior número?

O ministro relator afirma que a visão religiosa é preconceituosa[6], sendo a afirmação do magistrado o verdadeiro símbolo do preconceito. A decisão de alguns de mover a política segundo seus valores religiosos não deixa de ser um fazer humano. As ordens de Deus para os homens são para serem executadas nesse mundo, logo, apesar de oriundas do Transcendente, seu objetivo é regulamentar o comportamento humano. São mandamentos de natureza moral que por muito do tempo basearam a noção de certo e errado, mas que, apesar do caráter mandamental, ficam sujeitas ao livre arbítrio do homem, não cabendo serem aplicadas, no nosso tempo, sanções físicas ou de direitos, antes a consequência de eventuais transgressões (pecados) virá em julgamento Divino futuro para a vida eterna.

Não há que se criminalizar a escolha daqueles que resolvem nortear suas escolhas segundo valores que divergem de ideologias; a democracia precisa ser um ambiente de respeito e proteção às diferenças. Tomem-se por exemplo os partidos políticos: agremiações partidárias de posições mais à esquerda apoiam governos ditatoriais ao redor do mundo, apenas por compartilharem do mesmo plano de poder ideológico. No Brasil, por exemplo, que é um país democrático, existe um Partido Comunista do Brasil – PCdoB, e a história não nos permite esquecer as numerosas vítimas do comunismo.

No entanto, por mais nociva que se entenda essa vertente de pensamento, mesmo com o registro histórico do seu mal, o sistema eleitoral reconhece uma entidade partidária que fomenta e aplaude suas práticas ao redor do mundo. Quanto mais entidades religiosas, cujos valores conduzem o homem à busca por uma vida que não é secular. Enquanto as ideologias articulam a tomado do poder do Estado para os seus propósitos, os cristãos professam sua fé para a vida futura e, no exercício do seu dever cidadão, fazem suas escolhas em coerência com aquilo no que creem.

CONCLUSÃO

Conforme se afirmou inicialmente, o presente trabalho pretende comentar rapidamente o voto do ministro Edson Fachin, relator no Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139 – Luziânia – Goiás, no qual foi proposta – em voto ativista – a criação da modalidade de abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das ações de investigação judicial eleitoral. O voto do julgador evidencia uma tendência nas Cortes Superiores em boicotar e perseguir a ocupação pela via democrática de pessoas que professam determinada religião, notadamente a fé cristã. Esse fato claramente é atribuído à incompatibilidade entre os valores professados por este grupo religioso em face da filiação ideológica de boa parte da Corte Constitucional brasileira. Essa inclinação é preocupante sob o ponto de vista político e jurídico, eis que primeiramente, acaba por ignorar a vontade majoritária das urnas, segundo porque, através de manipulação dos instrumentos jurídicos, se distorce conceitos e princípios legais, antes sólidos. Os Tribunais Superiores, com destaque para o STF, criam um ambiente de perene insegurança jurídica, fundamentando suas decisões em valores ideológicos, ao arrepio da legislação vigente, apenas para esvaziar a influência daqueles que pensam diferente.


REFERÊNCIAS

[1] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf> Acesso em: 17 dez. 2017.

[2] TSE. Recurso Especial Eleitoral: Respe nº 82-85.2016.6.09.0139/GO. Relator: Ministro Edson Fachin. TSE, 2020. Disponível em: < https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-respe-8285-luziania-go-voto-ministro-edson-fachin-em-25-06-2020> Acesso em: 26 out. 2021.

[3] TSE. Recurso Especial Eleitoral: Respe nº 82-85.2016.6.09.0139/GO. Relator: Ministro Edson Fachin. TSE, 2020. Disponível em: < https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-respe-8285-luziania-go-voto-ministro-edson-fachin-em-25-06-2020> Acesso em: 26 out. 2021.

[4] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 145.

[5] TSE. Recurso Especial Eleitoral: Respe nº 82-85.2016.6.09.0139/GO. Relator: Ministro Edson Fachin. TSE, 2020. Disponível em: < https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-respe-8285-luziania-go-voto-ministro-edson-fachin-em-25-06-2020> Acesso em: 26 out. 2021.

[6] TSE. Recurso Especial Eleitoral: Respe nº 82-85.2016.6.09.0139/GO. Relator: Ministro Edson Fachin. TSE, 2020. Disponível em: < https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/arquivos/tse-respe-8285-luziania-go-voto-ministro-edson-fachin-em-25-06-2020> Acesso em: 26 out. 2021.